Começo o texto pedindo a licença dos leitores para aproveitar da liberdade que tenho nesses escritos e flertar com a possibilidade da construção de algo novo, uma ideia que me veio a alguns anos atrás onde falar sobre bolhas sociais estava em alta. Conversando com uma amiga disse "Jamais essas estruturas seriam bolhas, bolhas são muito fluidas.” E então instigado pela conversa escrevi uma pequena reflexão que exponho aqui.
“Costumam dizer que estamos em bolhas, eu não concordo, bolhas são frágeis demais, fluidas demais, estamos em vitrines, com certeza as vitrines são a simbologia que melhor nos cabe.
Estamos blindados, fortificados e intranspassaveis, a ignorância fornece e alimenta cada molécula que unifica esse vidro que nos protege do real, tememos o real e não saberei dizer se temê-lo ou querer se manter afastado dele seja desleal mas de fato torna-se uma perda incalculável. Essa vitrine ainda nos separa. No conforto do conhecido, dentro dessa redoma somente “meus manequins amigos”, protejo-me do outro atroz que fatiga a minha essência, tão mais humana e soberba, que me faz estatizar em posições desconfortáveis, entretanto, a todo momento somos movidos por mãos estranhas que nos vestem e nos despem, mãos que posicionam como iremos nos mostrar para o público, pois ele precisa se sentir confortável ao nos olhar, ele precisa saber que estamos fingindo tão bem quanto eles e estamos, esse é nosso pacto social.” (EU MESMO, ALGUNS ANOS ATRÁS)
Apesar de ainda concordar em certo grau com essa colocação fiquei divagando sobre “Por que bolhas?” e imediatamente - e totalmente relacionado com meu interesse em psicanálise - me veio à mente a possibilidade de uma relação entre essa simbologia “bolha” e as nossas experiências intrauterinas, afinal, qual outra bolha-placenta nos manteve tão seguros do real em qualquer outro momento da nossa vida?
Ressalto que o que exporei aqui é um ensaio, ainda que referenciado não se pretende como uma resposta a qualquer pergunta e de certa forma não se pretende como "científico" a partir do momento que não houve um processo de validação pelas instâncias responsáveis por isso. Como todo ensaio, é uma hipótese, que busca saber como o tema ressoará em quem o lê, podendo haver um desenvolvimento futuro mais bem planejado e com as técnicas precisas. Por ser ensaio terá um teor mais impessoal e opinativo (ainda que referenciado).
Pois bem, vamos começar a exposição dessas ideias.
Sabemos que os períodos de desenvolvimento humano são recheados de percalços que atravessam o indivíduo causando angústia e sentimentos ambivalentes e quando perturbados por coisas outras que não se esperam nesses períodos abrem-se as portas das possíveis psicopatologias. Focarei minhas observações nas relações intrauterinas, nos primeiros anos de vida desses sujeitos e nas formações rígidas de personalidade, fazendo, sobretudo, uma breve análise da racionalidade hegemônica que orienta nossa forma de pensar o mundo.
Ao longo dos tempos sofremos influências de diversos lugares e formas de pensamento, entretanto nenhuma tem influenciado tanto a ciência e sua forma de raciocinar quanto as ideias socrático-platônicas, essas ideias são arrastadas não só para a cientificidade como a mesma estabelece um junção no pensamento comum, o que se pode dizer é que a ciência se impregna de moralidade e a moralidade da ciência. Essa relação se torna muito evidente quando pensamos a história ocidental, entretanto, pego de empréstimo uma analogia que é levada ao longo do tempo e se pleiteia como uma estrutura extremamente atual, falo da maiêutica de Sócrates. Como muitos aprenderam na escola esse era o nome dado a Sócrates para uma técnica utilizada por ele, que seria algo como “parto das ideias”, ou pensando a partir de platão “a alegoria da caverna” que nada mais seria do que a possibilidade do renascimento do homem comum. Essa analogia parece interessante principalmente quando relembramos momentos históricos importantes como o iluminismo, renascimento e época das luzes. Claro que dentro desse conceito podemos observar quão próximo gênero e ciência se constam, mas o objetivo deste texto é imaginarizar um formato de pensamento a alude a construção social dessa bolha-placenta, onde o sujeito só possa surgir caso rompa com esse invólucro protetor que o germinou.
Sócrates - Pensa bem em tudo o que se refere à condição das parteiras, e aprenderás mais facilmente o que quero te dizer. Talvez saibas, de fato, que nenhuma delas, enquanto ela própria está em grau de ser fecundada e de parir, serve como parteira para as outras mulheres, mas o fazem aquelas que já não podem parir. (KUNZLER, 2021)
Mas pensando sobre essa relação se apresenta uma dificuldade pulsante: a da impossibilidade de parir. Ou talvez o desejo primeiro de se reservar na ignorância. “Essa técnica, segundo Raele e Antiseri (2003), foi a verdadeira razão do julgamento de Sócrates e a sua condenação à morte, pois muitos de seus acusadores queriam escapar do método Socrático, uma vez que, inevitavelmente, teriam suas almas “despidas”, para prestar contas de seus atos morais.” E então chegamos finalmente à pergunta “Por que algumas pessoas são resistentes a mudarem de ideia de maneira que sua negativa chegue a negar o Real?”
Quando pensamos em personalidades rígidas imaginamos que algo se alça na história do sujeito que o proíbe ou o afasta de realidades possíveis, mas quando fazemos isso sempre voltamos a fatores onde essas pessoas já teriam certa consciência, algo no entorno das primeiras idades, mas minha proposta é pensar nessa personalidade sendo já germinada através das relações desejantes das potenciais crianças e mais importante, a relação que esse feto estabelece no útero.
Procurar o que alguma coisa quer dizer não é indicá-lo por trás das aparências, mas ver que existem aderências entre as partes espaciais do embrião e as partes temporais de sua vida. Ao acompanhar a narrativa de sua vida de comportamento, é-se obrigado a reconhecer a relação interna de sentido dessas diferentes fases, a ver aí a modulação de uma mesma vida. (Schpallir, 2017)
Portanto, quando imaginamos o feto e sua existência nessa bolha que o sustenta precisamos entender essa vida regada de potencial de memória afetiva, ali dentro, seguro do mundo, não usa a boca para comer e nem precisa de que suas necessidades básicas sejam conquistadas através de malabarismos emocionais-comportamentais, pelo contrário, simbiótico com sua mãe assiste o mundo que se constrói de sons, movimentos e emoções. Schpallir (2017) diz que o desenvolvimento embrionário antecipa o comportamento futuro, os órgãos ou esboços de órgãos do embrião só têm sentido se forem considerados dentro desta lógica e por consequência essa dinâmica têm que ser constatada de uma atenção primeira para a formação do ser no mundo. Sobretudo, sempre lembrar que o adulto é tão dependente de seu meio quanto o embrião do seu, após o nascimento ocorre apenas uma mudança na dependência em relação a outro ambiente, mas não de independência.
O bebê na emergência de sujeito aprende a ouvir, aprende a se re-posicionar dentro da barriga da mãe, aprende sobre o toque da mão terna que separado por fina pele sente caloroso, mas também aprende sobre estresse e turbulências, dizer que esse feto não cria desde o ventre da mãe caminhos que o ajudam a se orientar no aqui e agora é negar também toda a formação biopsicossocioespiritual de todos os sujeitos adultos.
A vida psíquica pré-natal deve ser entendida como uma lenta germinação a partir do encontro entre a sensorialidade fetal, - que como veremos é fundamentalmente acústica e tátil -, e o seu aparelho biológico, alimentado pela sensorialidade materna, seu corpo e suas emoções, que impulsionam, então, a criação da primeira imagem afetiva, como um anúncio da separação.[...] A ligação entre o ouvido fetal e a voz materna, basilar não apenas para o reconhecimento da mãe pelo filho, após o nascimento, mas também para o estabelecimento da primeira imagem afetiva.[...] Nesse sentido, a musicalidade vocal da palavra, junto de toda performance corporal e evocação emocional que ela implica, torna-se basilar para se pensar a relacionalidade que ampara e antecede o aprendizado da linguagem. (AMARAL, 2018)
Safatle (2022) nos ensina que toda pessoa é, no fundo, uma palavra encarnada, isso significa dizer que todo sujeito adentra na possibilidade (talvez falseada) de se relacionar com o outro pela via da palavra, ela estrutura, nomeia, qualifica, enfim, insere o indivíduo na plausibilidade de se inventar enquanto outros o inventaram, isso é o mesmo que afirmar o óbvio, para nascer, crescer e nos tornarmos "alguém" é preciso sair da bolha-útero que nos comporta e, em dado momento, nos comprime. Porém, surgir como pessoa exige urgência em tornar-se algo que não se sabe o que, mas se deseja (tanto pela mecânica biológica que expulsa o feto quanto pela espera ansiosa, negativa ou positiva, dos cuidadores) sobretudo, por uma atividade que rejeita ser carregado acoplado ao corpo materno.
Ora, apesar desse bebê que aponta no horizonte precisar nascer, seu nascimento não lhe dá garantia das mesmas regalias intra-úterinas. Se encontrando com seus cuidadores uma outra forma de estabelecer-se será preciso, não só para que suas necessidades fisiológicas sejam atendidas, mas também as existenciais. Porém, quando estamos diante desse novo momento não existem garantias que as habilidades de trato desse sujeito-criança sejam as que ele precisa ou que sejam o que ele de fato prazeroso para ele.
A relação com os pais (os outros) é uma relação não de instinto, mas de história [...] muito do que já aprendemos na primeira infância está permeado de valores das pessoas que cuidam de nós, que podem ou não reproduzir conceitos e aprendizagens que elas mesmas viveram. É nesse processo onde a criança externaliza seu estado e necessidades fisiológicas que são comunicadas através das emoções, do choro, gritos. Os adultos respondem a esse comportamento e vão atribuindo sentido a eles, como se a criança estivesse fazendo manha, sorrindo, observando etc. As funções simbólicas se originam nesses aspectos. (NASCIMENTO)
Portanto, se assevera o fato de que os bebês nascidos carregam uma carga efetiva, experiencial e até existencial do seu tempo nessa bolha-placenta e que sua formação aqui fora exige um malabarismo de tudo que foi vivido até o momento, forçando-o talvez até a abdicar dos seus prazeres constituintes. Nesse momento do texto saltarei nessa nossa conversa para já imaginarmos esse indivíduo adulto, acrescento que como sendo um ensaio meu objetivo não é fadigar os leitores com explicações mais profundas das constituições intrapsíquicas desses seres, entretanto, talvez para aqueles cuja a afinidade com a psicanálise seja mínima, algumas discrepâncias na formulação dessa idéia pode se apresentar, mas tentarei de forma mais precisa colocar minhas ideias em evidência.
O próximo passo para nos orientar é fazer como Freud fazia, apesar da rigidez não ser considerada uma psicopatologia ela é prejudicial para o devir humano, por isso tomarei de empréstimo uma ideia de Adorno, autor que criou uma escala de personalidade fascista para compreender o fenômeno dos preconceitos no auge da guerra mundial e do antissemitismo, esse autor será referido em outros textos, então se acostumem em ve-lo.
Adorno na sua escala constata diversos “tipos” de personalidade e como sendo seu teste uma escala, esses tipos iam do alto pontuador ao baixo pontuador e eu trarei para nossa conversa 2 tipos, um alto e o outro baixo, sendo opostos um ao outro, mas o que irá nos interessar é a forma de funcionamento desses tipos. Esclareço que o objetivo não é patologizar uma forma de funcionamento, antes de tudo, pensarmos uma estrutura para ligarmos com o que já foi feito. Também é extremamente necessário dizer que Adorno é de uma perspicácia tremenda quando através das suas análises mostra que todos possuem uma via autoritária e que essa via pode ser facilitada pela forma que nos relacionamos, mormente, quando pensamos a relação dos afetos e capitalismo (mas talvez isso seja melhor explicado em Deleuze e Gattari).
O tipo de personalidade autoritária do alto pontuador que alço aqui é o tipo “alucinado”, que podem ser caracterizados pela frustração no sentido mais amplo do termo, são pessoas que não conseguiram se ajustar ao mundo, aceitando o "princípio de realidade”, eles falharam em certo aspecto em conseguir encontrar equilíbrio entre as renúncias e gratificações. Sua vida interior é determinada pelas negações impostas sobre elas de fora, não só durante a infância, mas ao longo da vida. Elas precisam construir um mundo interior regado de ilusões. Para confirmarem uns aos outros suas pseudorealidades, tendem a formar seitas, muitas vezes baseados em alguma panaceia da natureza. Nesse tipo de personalidade as ideias conspiratórias constituem um papel importante e um traço significativo é a semierudição. Portanto, podemos imaginarizar alguns grupos dentro dessa tipologia, aqueles de masculinidade, que busca o retorno do homem viril, mais animalizado, ou os movimentos que defendem a terra plana e por aí vai…(ADORNO, Pág. 556-561)
O tipo de personalidade do baixo pontuador que ergo é o tipo “impulsivo”, nesse tipo seu eu se alinha com seu isso (inconsciente) de modo a produzir uma gama de excessos nos seus comportamentos, tem um isso extremamente forte, mas relativamente livres de impulsos destrutivos. Parece haver uma fraqueza tanto no supereu quanto no eu e isso torna esses indivíduos um tanto instáveis em questões políticas, assim como em outras áreas, são atraídas por tudo que é diferente e que prometa alguma espécie de gratificação. Talvez conseguimos relacionar esse tipo com o que conhecemos como esquerdomacho. (ADORNO, Pág. 580-583)
Nesse ponto acredito que já tenham entendido a relação que proponho, principalmente após expor esses tipos de personalidade que possuem uma dinâmica psi que apesar de serem contrárias podem ser pensadas a partir do mesmo prisma, o da constituição embrionária enquanto uma primeira formulação de prazer e as quebras dessas construções ao nascer. Enquanto o alto pontuador parece querer continuar na bolha por nunca ter saído (simbolicamente, óbvio), o baixo pontuador parece desesperado para reencontrar esses afetos primeiros, um lugar de pertencimento completo.
Vale lembrar que essas hipóteses podem ser totalmente equivocadas e para a melhor compreensão desses fatores seriam necessários uma boa base teórica para orientar a pesquisa, mas principalmente, uma pesquisa de cunho longitudinal ou estruturada para desvendarem os mistérios da rigidez de idéias que acometem os humanos nas suas relação. Entretanto, uma coisa não pode ser falseada: “estar-em-esferas constitui a condição fundamental para os seres humanos”. (AMARAL, 2018)
Eliel Lima
Psicólogo - CRP 05/70226
• Interessado em descolonialidade, relações étinico-raciais, processo de autoritarismo/formação de massa e estudos de cultura.
Referências:
Status do embrião humano: fundamentação filosófica. Uma reflexão através da fenomenologia.
Ambiente afetivo da escuta análise sobre a comunicação intrauterina e suas implicações para uma teoria da áudio-imagem
O ensino das habilidades socioemocionais na educação infantil
Contribuições do entrelaçamento entre a maiêutica socrática e a pedagogia freireana para o ensino
Estudos sobre a personalidade autoritária
Introdução a Jacques Lacan
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