Com o início do novo governo Lula alguns posicionamentos referente a situação da Rede de Atenção Psicossocial eram esperados (RAPs), entretanto a classe antimanicomial teve uma desagradavel surpresa ao descobrir que a atual gestão iria criar um Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas. Para diminuir a tensão o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fome afirmou que o setor está sob revisão, entretanto, faz-se notar a importância que esse tema produz para a sociedade e que regados de sentimentos controversos e falta de informação se distanciam das problemáticas reais das comunidades terapêuticas no Brasil.
Ao longo da história manicomial em terra nacional tivemos diversos eventos catastróficos no cuidado, assistência e prestação de serviços a pessoas que necessitavam desses cuidados. Violencias, segregações, exclusões, mortes, tortura, a intituição sendo usada como lugar de “degenerados” sociais e por ai vai. Não pretendo neste texto trazer a história da saúde mental no Brasil. O que se sabe hoje é da extrema importancia da rede e dos ataques que vem sofrendo desde seu estabelecimento e expansão, sobretudo na gestão governamental anterior que tinha uma pauta religiosa muito forte, mas antes disso a rede já sofria os avanços desagregadores, mais especificamente seu início silencioso se encontra entre 2014/2015 com a concretude em 2016 e culminando no desmanche de diversas políticas da reforma psiquiátrica, mas por que citar esse desenvolvimento? Porque dentre tantas ações como o aumento dos leitos psiquiátricos com ajuda de verba para hospitais, a redução do repasse de verbas para a RAPs, as investidas contra as políticas de álcool e outras drogas, temos as Comunidades Terapêuticas (CT) centralizando todo o protagonismo, nos últimos anos o financiamento federal dessas estruturas explodiu, passando de 47mi (2017) para 100mi (2019) e o orçamento de 2023 previa um montante de 272mi separados para a redução da demanda de drogas que tinha seu destino quase total para as CTs.
Santa inquisição, CTs e direitos humanos
Diversas pesquisas apontam para o fato das igrejas ocuparem dentro do cenário de desassistência governamental o papel social que esse ente deveria estar cumprindo, o protagonismo do evangelismo sobretudo tem se expandido nesses espaços que necessitam do cuidado do Estado, somado a isso os CTs assumem a responsabilidade de dar conta de uma população fragilizada pelo uso de álcool e outras drogas e pessoas com transtorno mental, portanto, a liga perfeita é constituída. Mas diferente do que se espera, esses espaços estão longe de conseguirem para seus internos o paraíso que dizem possuir, seus serviços mais parecem como uma reprodução da santa inquisição.
A inquisição (a santidade estaria no delírio da onipotência?) foi um movimento religioso, político e até econômico da idade média para a modera onde um tribunal julgava os hereges (pecadores), dentro desse processo tinhamos de tudo, apreensão sem provas, tortura, mortes horrendas e por ai vai.
Quando comparo as Cts com a inquisição provoco nos leitores mais conservadores um sentimento de incômodo, mas em contraste com a reforma psiquiátrica é inegável o papel descompromissado dessa instituição para com os direitos dos seus usuários, mormente, com os direitos humanos.
Segundo o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas grande parte das comunidades terapêuticas visitadas tinham/tem o isolamento ou a restrição do convívio social como eixo central do suposto tratamento oferecido, o que anda em desalinhamento com a lei 10.216/2001 onde se entende de que para oferecer o cuidado necessário é primordial a possibilidade (e o incentivo) da cidadania, o atendimento a essa população deve priorizar a inserção na família, no trabalho e na comunidade. A quem interessa a invisibilidade dos usuários de álcool e outras drogas e das pessoas com transtorno mentais?
É marca da maioria das instituições visitadas o impedimento à livre saída do estabelecimento e muitas recorrem à punição em caso de tentativa de fuga. Em algumas comunidades também foi constatada a prática de retenção de documentos e pertences de usuários, assim como de cartões bancários ou para o acesso a benefícios previdenciários. [...] Em São Paulo (SP), por exemplo, um interno da comunidade terapêutica Recanto da Paz informou que as conversas telefônicas não eram privadas e que, quando havia a tentativa de informar aos familiares a intenção de abandonar o estabelecimento – inclusive em razão de violações de direitos – a direção fazia contato com a família a fim de demovê-la da ideia. (Relatório de Inspeção, 2018)
Um pontos mais trabalhados e que a RAPs mais luta no seu processo de desinstitucionalização é a liberdade dos pacientes, um processo de cura não pode flertar com mecanismos de aprisionamento do corpo e das individualidades dos sujeitos, o poder ir e vir encontra nesse movimento a possibilidade de se criar um projeto terapêutico singular que entre em contato com a disponibilidade e responsabilização do indivíduo no seu cuidado, de portas abertas criam-se laços de confiabilidade que são fortalecidos pelos serviços ofertados, produzindo terapêuticas que manejam as inconstâncias e servem para esses usuários como o que Bion chamaria de uma função de continente. Isso significa que os pacientes que precisam de uma internação involuntária caso não tenham a autonomia de decisão num momento de crise ficarão sem cuidados caso não queiram? Não! Temos instituído na lei da reforma psiquiátrica que um pedido de internação pode ser feito por um médico especialista através de um laudo e que o mesmo deve enviar tal documento em até 72h para o ministério público, entretanto a inspeção de 2017 mostrou que apenas duas das 28 comunidades terapêuticas visitadas possuíam o documento médico com a autorização para tais internações. Isso configura uma quebra constitucional grave e que de forma alguma deve sair desresponsabilizados.
Sobre as internações compulsórias (por determinação judicial) também se encontram irregularidades na forma com que a jurisprudência trata os casos, enviando uma grande demando de pessoas usuárias de álcool ou outras drogas para cumprir suas medidas em CTs, muito das vezes obrigando o ministério público a arcar com os gastos desses indivíduos que não possuem prazo para sair.
Até quando se fala das internações voluntárias (internação realizada de acordo com o desejo do paciente) temos quebra de direitos nesses espaços. Enquanto para ingressar existem diversas facilidades, como opções de pagamento, transporte grátis e outros, ao manifestar o desejo de sair encontram-se obstáculos diversos, como multa por quebra de contrato, retenção de documentos, pressão sobre familiares, entre outros.
Destaca-se ainda as diversas formas de violência perpetradas nessas instituições, sendo violencias fisicas, psicologias, trabalho analogo a escravidão, praticas de tortura e punitivismo como aumento das horas trabalhadas e das atividades realizadas, enclausuramento em espaços especificos, socos, mata-leão, copia de partes da biblia repetidas vezes e muitas outras.
Em 16 dos locais inspecionados foram identificadas práticas de castigo e punição a internos. Essas sanções variam entre a obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições e a violência física. Também foram identificadas práticas como isolamento por longos períodos, privação de sono, supressão de alimentação e uso irregular de contenção mecânica (amarras) ou química (medicamentos) – todas elas podem ser caracterizadas como práticas de tortura e tratamento cruel ou degradante, de acordo com a legislação brasileira. (Relatório da inspeção, 2018)
Por último e para mim o mais desagregador das violências se encontram naquelas praticadas contra as orientações sexuais/identidades de gênero e contra as religiões. Quando penso sobre isso me sobrevém a imagem de uma mulher trans que foi altamente circulada nas mídias onde tinha seu cabelo raspado no meio de um choro ininterrupto, no fundo, fundamentalistas religiosos gritavam a plenos pulmões. A cena ocorreu em uma CT e tinha como pano de fundo a necessidade da mulher trans recusar sua identidade pecaminosa para alcançar a cura, esta não se daria pela via da colaboração com uma equipe técnica e multidisciplinar, mas pelas mãos de um ser divino. Diversos vídeos como o citado já foram circulados pela internet o que demonstra a certeza da impunidade contra os atentados aos direitos das pessoas. No âmbito religioso temos relatos de pacientes de CTs que eram obrigados a participar de cerimônias religiosas, que tinham um espaço reservado no dia para a oração em conjunto, inclusive, uma das entrevistadas relatou a impossibilidade de cultuar sua fé, antes disso teve a imagem de nossa senhora tirada dos seus pertences e rasgada (o que não acontece com as pessoas adeptas da religião de matriz africana?).
Termino esse texto esperando ter causado no leitor o máximo de desconforto possível, apesar do relatório possuir mais de 170 páginas eu busco que ao menos seja o veículo para o senso crítico em relação às novas políticas públicas instaurados no país, sobretudo as políticas voltadas para a assistência de pessoas com transtorno mental e as usuárias de álcool e outras drogas. Devido as semanas agitadas não pude me desdobrar no assunto como eu gostaria de fazer, mas se gostarem comentem nas redes para ter uma devolutiva sobre o que os interessam ler.
Referencias
Relatório de Inspeçã
Governo Lula e as CTs
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